26 de mai. de 2007
Exílio (ALEJANDRA PIZARNIK)
Esta mania de me saber anjo,
sem idade,
sem morte para a qual viver,
sem piedade por meu nome
nem por meus ossos que choram vagando
E quem não tem um amor?
E quem não goza por entre amapolas?
E quem não possui um fogo, uma morte,
um medo, algo horrível,
ainda que fira com plumas,
ainda que fira com sorrisos?
Sinistro delírio amar uma sombra.
A sombra não morre.
E meu amor
só abraça ao que flui
como lava do inferno:
una loja calada,
fantasmas em doce ereção,
sacerdotes de espuma,
e sobretudo anjos,
anjos belos como lâminas
que se elevam na noite
e devastam a esperança.
sem idade,
sem morte para a qual viver,
sem piedade por meu nome
nem por meus ossos que choram vagando
E quem não tem um amor?
E quem não goza por entre amapolas?
E quem não possui um fogo, uma morte,
um medo, algo horrível,
ainda que fira com plumas,
ainda que fira com sorrisos?
Sinistro delírio amar uma sombra.
A sombra não morre.
E meu amor
só abraça ao que flui
como lava do inferno:
una loja calada,
fantasmas em doce ereção,
sacerdotes de espuma,
e sobretudo anjos,
anjos belos como lâminas
que se elevam na noite
e devastam a esperança.
TU (Maiakovski)
Entraste.
A sério, olhaste
a estatura,
o bramido
e simplesmente adivinhaste:
uma criança.
Tomaste, arrancaste-me o coração
e simplesmente foste com ele jogar
como uma menina com sua bola.
E todas,
como se vissem um milagre,
senhoras e senhorias exclamaram:
- A esse amá-lo?
Se se atira em cima,
derruba a gente!
Ela, com certeza, é domadora!
Por certo, saiu duma jaula!
E eu júbilo
esqueci o julgo.
Louco de alegria
saltava
como em casamento de índio,
tão leve, tão bem me sentia.
24 de mai. de 2007
Ademir Braz (Marabá)
História natural: a memória tribal
narrada por um sobrevivente
ei parceiro
tem um pássaro verde no teu ombro
e uma flor de sapucaia em teus cabelos.
não os espante, parceiro.
não os destrua, parceiro.
foge com eles, minino,
que tem grileiro no muro
faz fogo onde foi roçado
somos raça em extinção.
ave verde e sapucaia
já quase num dá pra ver
o boi comeu nossas matas
casa tapera mandinga
a fé cega do terçado
já num tem o que cortar
o fogo feio do truste
fez fugir fera mambira
o mangangá a mucura
seo jabuti seo preá
a onça mais roncadeira
não rosna mais ao luar.
desculpa nossa pobreza.
um dia já fomos ricos:
a tribo, pra suas festas,
vestia-se toda de cores:
vinha a buiúna das águas
do Pirucaba o murmúrio
(que mora na profundeza);
tinha matinta-perêra
de madrugada na rua;
o cupelôbo, na mata,
deixava riscos no chão.
alma penada era tanta
que tropeçava na gente!
pra se prender uma bruxa,
fazia-se oferta de fumo,
dava três voltas na chave
durante seu canto noturno.
desculpa nossa pureza.
eita, parceiro minino,
peita no mundo dipressa
que inté a língua perdemos!
o juquireiro é peão,
conforme dizem os senhores;
a posse, onde nascemos,
em tempo de matas virgens,
não é mais posse, é grilagem
e a gente somos grileiro
invasores turbadores.
“Saia do meu latifúndio
senão eu chamo a polícia
pra estourar o aparelho!”
(ai, mai frendi parceiro,
tá dando pra entender?...
vou rir que está doendo!)
tijolo da minha casa
não é mais tijolo: é tejolo;
e por me sacar a lajota,
a tijolada final quem leva
em rabo sou eu)
ai, saudades!...
antigamente, à noitinha,
a gente ia pra porta
conversar com os vizinhos;
botava cadeira em roda,
cobrindo toda a calçada
e haja histórias de fada,
do casarão assombrado,
da visagem beradeira
que assustava os meninos...
agora, é televisão...
até da vida alheia já se deixou de falar!
desculpa nossa aparência.
pistonar, hoje é paquera.
amar, por detrás dos muros,
virou coisa de museu;
papa-anjo é cocoteiro,
meu samba virou sambão.
a zona, com seus puteiros,
foi à França e não voltou:
é cabaret, é boite,
é rendez-vous e madames...
suicidaram o pecado e fiquei a ver navios.
Ai, boemia!...
Pau-d’urubu... Zonzeira... Rua do Poço...
Vou eu subindo, entre menino e moço,
pro Pindura-Saia, a flor do lodo.
Nenhum amor noturno aí me espera.
Mas, na sala infrene, a vã quimera,
de repente me envolve o corpo todo.
Ó frenesi de peitos que a blusa
das mulheres expõe à luz difusa...
Eu sonho seios coxa amor maduro
(enquanto um preto canta com voz rouca,
e ganem os metais presos à boca,
meus olhos incendeiam no escuro)!
(às vezes, a lembrança me torna
vergonhosamente lírico...)
desculpa nossa incerteza.
a gente só queria estar sozinho:
ver na matinê – em plenos anos 60 –
os seriados do zorro
os filmes de boris karloff
com os olhos da primeira vez;
o king-kong encardido... a louca vida de cristo...
tão mutilada a fitinha que a cada ano passava
um poucochinho mais curta...
(ah, a nostalgia que leva
o burguês ao cine-clube!)
a gente roubava moça pra se casar no outro dia;
a gente só via gente quando os barcos de castanha
voltavam da capital.
então a gente corria, só pra ver os estrangeiros.
o catalina de guerra pousava n’água e subia
carregadinho de carne pros ricos da capital;
os filhos dos nossos ricos estudavam em belém,
e quando vinham de férias, com suas roupas estranhas,
a gente olhava pra eles como chegados do céu.
(honra se lava com sangue, aprendemos em menino;
e um dia nos pagarão todo o mal que nos fizeram.)
desculpa nossa tristeza.
vassoura, detrás da porta,
mandava embora a visita;
pra que não chovesse à noite,
atrapalhando o programa
de encontrar namorada
(que já tava no Marrocos,
reservando duas cadeiras)
prendia-se a chuva num copo;
o cabilouro do boi,
se comido atrás da porta,
fazia ficar bonito.
perdoa nossos mistérios.
somos sobreviventes tribais. extinta
a tribo, restou-nos o botequim.
não me pergunte que fim levou
seo Santos, o plantador dos mortos,
nem onde está Ceará boista-de-boi
ou o Cururu-tem-tem que dava
carreiras olímpicas atrás dos moleques,
xingando a mãe, a puta que pariu,
azuado com o apelido tido aos berros
por mil bocas risonhas sob o sol;
nem queira saber de Zabelona,
a louca municipal, ou do cara
que passava o dia inteiro imitando
instrumentos ácidos, cantando e assobiando
e batucando com uma lata de querozene esso jacaré
vazia sobre o ombro, encostada à face,
e a sonoridade pura do prazer se despejando
da lata e de seus olhos vesgos.
eles estão mortos. Nós todos estamos mortos.
a cacofonia da lata em meus ouvidos chama-se saudade.
restou-nos talvez algum canto ancestral
uma eterna panela de ferro em tripé
um caroço de ouriço (duro, áspero, sujo,
carregado de frutos leitosos – a imagem
mais concreta de nossa alma trucidada);
talvez ainda um paneiro de castanha
pendurado entre peles de obra, chapéus
de palha, arco e flecha, cocares trágicos
- fósseis roubados ao dilúvio –
e que hoje, destroçada a essência,
decoram como escalpo a sala dos conquistadores.
entenda a nossa miséria.
era gostoso votar, eleger o mandatário.
era tudo rica gente, quem usava o microfone.
nesse tempo, de repente, a gente era importante:
ganhava muda de roupa, comia carne no almoço,
bebia cerveja às pencas, andava de roupa
branca e ar de festa na cara...
tudo por conta dos ricos.
o voto, uma coisa cara; a gente
se corrompia, enchia a pança de pinga,
brigava na putaria pra pagar uma rodada,
fazia puta chantagem com os donos de nossa vida
(êta vingança paidégua!)
alcança nossa alegria.
a vida exposta no muro
sempre em pasquim gozador
de vez em quando fazia
esc6andalo doce e feroz:
“o pai do fulano é corno”
(geralmente um boçal)
e lá vinham as coisas podres
(que a gente sabia há tempo)
escrita em letras cruéis
na porta do mercadinho.
de melão-são-caetano a gente fazia judas.
um dia, dois lambanceiros,
carregando um desses monstros,
deram de cara com a justa.
era escuro e era tarde:
- onde vão, rapaziada?
- - levar o porre pra casa.
- muito bem, se a gente pega
leva logo pro xadrez.
entenda nossa virtude.
(a vida é um trem-expresso;
a noite, meu sonho aceso;
a luz do sol, o meu medo,
coisas que trago e não calo)
dona Totó, matriarca, levou a vida em chinelos.
Tinha medo de feitiço e se pegava nos santos.
Somente para assustá-la, sal pimenta
e pião-roxo em sua porta deixou-se;
levou a velha um mês, lavando a porta com banhos
(e nós, por trás, sisbaldando)
sic transit gloria mundi!
amas a morte, parceiro?
Ai, que saudade que eu tenho
Dos tiroteios de outrora!...
Geraldina cangaceira mandou matar o marido
nos garimpos do pedral. depois comprou um cavalo
todo arriado e fogoso, vestiu uma calça de homem
e bebia em botequim. tinha papo e andava armada.
era o terror dos meninos.
um dia foi encontrada cravada à faca no chão;
do coração decepado não lhe saiu uma gota!
então as pedras choveram durante um mês no lugar.
poetas desesperados escreviam e se matavam.
na casa de Vó Floripes, Luís, Jacundá e Getúlio
morreram só de beber.
Até hoje ninguém sabe quem matou o cara estranho
que foi achado no rio, com a tez tirada à faca.
perceba a nossa herança.
a nossa pouca vergonha, nossa desordem astral,
sempre humilhou a Cultura. eis o espanto dos sábios:
“Desde o Piauhi, todo o sertão exportou víveres, carne de boi e de porco; toucinho,farinha sêcca e de puba, assucar, cachaça, tabaco, doces, queijos, gallinhas,ovos, bois vivos, porcos e vaccas paridas,até laranjas, aboboras e inhames para a phantastica e maravilhosa Marabá,surgida de repente como obra de magia na foz do escuro tio Tacai-una”.
e a delícia que fomos!...
“Marabá brotara da ganância do dinheiro; logo,totalmente alheia a qualquer preocupação religiosa e moral. Principiou sendo o que chamam currutela, nome bem significativo, empregado com muito acerto nas regiões de garimpos, e que não carece comentários (...)
Algumas das pragas morais e sociais mais comuns Eram a mancebia e a poligamia, por meio sobretudo do casamento civil. Quantos desses seringueiros,
castanheiros, esqueciam-se de suas famílias legítimas,E tentavam construir outro lar, servindo-se do contrato civil passado sem as menores garantias, perante funcionários sem conhecimentos jurídicos e sobretudo sem moral!
Não se respeitava nem casamento religioso, nem contrato civil efetuados anteriormente em outros lugares”.
mas não ficava só nisso...
ouçamos a voz de outros:
“Marabá” - palavra mágica: luminosa e sombria evocando contos fantásticos ou narrações de aventureiros. (...) Mas, que habitantes! Aventureiros arriscando a sorte, colhedores de castanha, que são também, conforme a sucessão das estações, caçadores de diamantes. (...) Em Marabá encontram-se todas as raças e todas as paixões. A prostituição aí é intensa. Os casais em absoluto não se conformam com as promessas definitivas sancionadas pela Igreja ou pela lei civil. A proporção de botequins bate sem dúvida o recorde do mundo: um, para cada 17 habitantes.”
O nomadismo é inerente a essa raça: instabilidade inata, tanto do sertanejo como do garimpeiro, hoje aqui, amanhã acolá, com ou sem razão. Vontade de “ver o mundo”, desejo nunca satisfeito de melhorar de vida. (...) Essa instabilidade da população só pode prejudicar gravemente a humanização e a “civilização da cidade, pois, que interesse há em constituir uma família, em construir uma casa, em dar uma instrução séria às crianças, se a vida, hoje “arrumada” aqui, tiver de ser amanhã transportada acolá e, depois de amanhã, ainda alhures?
... Entremos numa dessas casas. Cuidado em não esbarrar logo na entrada, pois há no chão uma fileira de paus curtos enfiados na terra erguendo-se ameaçadores, tal qual dentes de ancinhos; servem, na ausência de porta, para interditar a entrada aos porcos da vizinhança (...) Tanto as paredes como de palha de uns dois metros de altura, que esboçam uma divisão da casa em cômodos, são recobertos de jornais. Esse revestimento, julgam os moradores, é muito mais bonito do que um leite de cal ou a simples palha trançada. “Só branco, não interessa”, disse-me um deles certa vez. Para passar o tempo, basta se aproximar da parede e ler o jornal. E, se não souber ler, pode-se ao menos olhar as gravuras. (...)
(...) a rede é sempre individual. Mas ninguém sabe, de tarde, quantas pessoas irão dormir de noite na casa. Talvez somente a família: os homens de um lado do tabique e as mulheres do outro. Mas, muitas vezes, parentes e amigos que vêm do “centro do comércio” pedem para arranchar e ficam semanas, meses a fio. É a lei da hospitalidade.
(...) Não seria luxo, é claro, consertar essas casas (na medida do possível), tapar os buracos das paredes, trocar a palha do teto, instalar uma mesa na cozinha? Mas, para quê?”
Barruel velho de guerra num entendeu porra nenhuma!
E que pensavam os barqueiros
deste médio Tocantins?
Eles cantavam, cantavam...
Quem me dera eu vê hoje
de quem m’alembrei agora
quem eu trago no sentido
retratado na memora
vou mimbora, vou mimbora
as águas vão me levano
eu nem sei quem fica atrás
mas meus zoios vão chorano
acabou-se, acabou-se
quem eu amava com firmeza
cobriu o corpo de luto
e o coração de tristeza
vou mimbora, vou mimbora
lá pra baixo, pro Pará,
não chore por mim, morena,
eu vou e torno a voltar
rio abaixo, rio abaixo
remando minha canoa
encostando em todo porto
ganhando coisa boa
rio arriba, rio abaixo
remando na montaria
coisa que acho bunito
canoa aqui leva Maria
cantei onte, cantei hoje,
querem que eu cante travez
meu peito num é de aço
nem foi ferreiro qui fez
essa noite não drumi
cuma marreca piano
o marvado desse bicho
é gente qui tá criano
vou mimbora, vou mimbora
de hoje tô m’aviano
o cavalo que vou nele
tá no mato si criano...
ai, as súcias de outrora!...
eu vi, meu mano, eu vi,
eu vi o acamadô
onde o Fonseca apanhou...
quantos tiros deu na onça, Luizãlo?
Dei um, dei dois, mas o bicho
foi-se embora
E p í l o g o
então, meu mano, o mundo
pegou de raiva com a gente:
abriu a tranca do inferno
tirou seus monstros de ferro
cortou o verde das matas
rasgou a casca do ovo
e despejou nossa história.
depois, os seus cavaleiros
entraram portas a dentro
cortaram nossos cabelos
comeram nosso feijão
botaram fogo na roça
e semearam colonião.
morreu quase todo bicho
esvaiu-se todo encanto
visagem caiu no mato
- pernas, para que vos quero? –
passarinho foi embora
dizer pra onde não sei;
só ficamos nós, coitados,
presos no arame farpado
bando de bois entre bois.
calcule nossa tragédia.
narrada por um sobrevivente
ei parceiro
tem um pássaro verde no teu ombro
e uma flor de sapucaia em teus cabelos.
não os espante, parceiro.
não os destrua, parceiro.
foge com eles, minino,
que tem grileiro no muro
faz fogo onde foi roçado
somos raça em extinção.
ave verde e sapucaia
já quase num dá pra ver
o boi comeu nossas matas
casa tapera mandinga
a fé cega do terçado
já num tem o que cortar
o fogo feio do truste
fez fugir fera mambira
o mangangá a mucura
seo jabuti seo preá
a onça mais roncadeira
não rosna mais ao luar.
desculpa nossa pobreza.
um dia já fomos ricos:
a tribo, pra suas festas,
vestia-se toda de cores:
vinha a buiúna das águas
do Pirucaba o murmúrio
(que mora na profundeza);
tinha matinta-perêra
de madrugada na rua;
o cupelôbo, na mata,
deixava riscos no chão.
alma penada era tanta
que tropeçava na gente!
pra se prender uma bruxa,
fazia-se oferta de fumo,
dava três voltas na chave
durante seu canto noturno.
desculpa nossa pureza.
eita, parceiro minino,
peita no mundo dipressa
que inté a língua perdemos!
o juquireiro é peão,
conforme dizem os senhores;
a posse, onde nascemos,
em tempo de matas virgens,
não é mais posse, é grilagem
e a gente somos grileiro
invasores turbadores.
“Saia do meu latifúndio
senão eu chamo a polícia
pra estourar o aparelho!”
(ai, mai frendi parceiro,
tá dando pra entender?...
vou rir que está doendo!)
tijolo da minha casa
não é mais tijolo: é tejolo;
e por me sacar a lajota,
a tijolada final quem leva
em rabo sou eu)
ai, saudades!...
antigamente, à noitinha,
a gente ia pra porta
conversar com os vizinhos;
botava cadeira em roda,
cobrindo toda a calçada
e haja histórias de fada,
do casarão assombrado,
da visagem beradeira
que assustava os meninos...
agora, é televisão...
até da vida alheia já se deixou de falar!
desculpa nossa aparência.
pistonar, hoje é paquera.
amar, por detrás dos muros,
virou coisa de museu;
papa-anjo é cocoteiro,
meu samba virou sambão.
a zona, com seus puteiros,
foi à França e não voltou:
é cabaret, é boite,
é rendez-vous e madames...
suicidaram o pecado e fiquei a ver navios.
Ai, boemia!...
Pau-d’urubu... Zonzeira... Rua do Poço...
Vou eu subindo, entre menino e moço,
pro Pindura-Saia, a flor do lodo.
Nenhum amor noturno aí me espera.
Mas, na sala infrene, a vã quimera,
de repente me envolve o corpo todo.
Ó frenesi de peitos que a blusa
das mulheres expõe à luz difusa...
Eu sonho seios coxa amor maduro
(enquanto um preto canta com voz rouca,
e ganem os metais presos à boca,
meus olhos incendeiam no escuro)!
(às vezes, a lembrança me torna
vergonhosamente lírico...)
desculpa nossa incerteza.
a gente só queria estar sozinho:
ver na matinê – em plenos anos 60 –
os seriados do zorro
os filmes de boris karloff
com os olhos da primeira vez;
o king-kong encardido... a louca vida de cristo...
tão mutilada a fitinha que a cada ano passava
um poucochinho mais curta...
(ah, a nostalgia que leva
o burguês ao cine-clube!)
a gente roubava moça pra se casar no outro dia;
a gente só via gente quando os barcos de castanha
voltavam da capital.
então a gente corria, só pra ver os estrangeiros.
o catalina de guerra pousava n’água e subia
carregadinho de carne pros ricos da capital;
os filhos dos nossos ricos estudavam em belém,
e quando vinham de férias, com suas roupas estranhas,
a gente olhava pra eles como chegados do céu.
(honra se lava com sangue, aprendemos em menino;
e um dia nos pagarão todo o mal que nos fizeram.)
desculpa nossa tristeza.
vassoura, detrás da porta,
mandava embora a visita;
pra que não chovesse à noite,
atrapalhando o programa
de encontrar namorada
(que já tava no Marrocos,
reservando duas cadeiras)
prendia-se a chuva num copo;
o cabilouro do boi,
se comido atrás da porta,
fazia ficar bonito.
perdoa nossos mistérios.
somos sobreviventes tribais. extinta
a tribo, restou-nos o botequim.
não me pergunte que fim levou
seo Santos, o plantador dos mortos,
nem onde está Ceará boista-de-boi
ou o Cururu-tem-tem que dava
carreiras olímpicas atrás dos moleques,
xingando a mãe, a puta que pariu,
azuado com o apelido tido aos berros
por mil bocas risonhas sob o sol;
nem queira saber de Zabelona,
a louca municipal, ou do cara
que passava o dia inteiro imitando
instrumentos ácidos, cantando e assobiando
e batucando com uma lata de querozene esso jacaré
vazia sobre o ombro, encostada à face,
e a sonoridade pura do prazer se despejando
da lata e de seus olhos vesgos.
eles estão mortos. Nós todos estamos mortos.
a cacofonia da lata em meus ouvidos chama-se saudade.
restou-nos talvez algum canto ancestral
uma eterna panela de ferro em tripé
um caroço de ouriço (duro, áspero, sujo,
carregado de frutos leitosos – a imagem
mais concreta de nossa alma trucidada);
talvez ainda um paneiro de castanha
pendurado entre peles de obra, chapéus
de palha, arco e flecha, cocares trágicos
- fósseis roubados ao dilúvio –
e que hoje, destroçada a essência,
decoram como escalpo a sala dos conquistadores.
entenda a nossa miséria.
era gostoso votar, eleger o mandatário.
era tudo rica gente, quem usava o microfone.
nesse tempo, de repente, a gente era importante:
ganhava muda de roupa, comia carne no almoço,
bebia cerveja às pencas, andava de roupa
branca e ar de festa na cara...
tudo por conta dos ricos.
o voto, uma coisa cara; a gente
se corrompia, enchia a pança de pinga,
brigava na putaria pra pagar uma rodada,
fazia puta chantagem com os donos de nossa vida
(êta vingança paidégua!)
alcança nossa alegria.
a vida exposta no muro
sempre em pasquim gozador
de vez em quando fazia
esc6andalo doce e feroz:
“o pai do fulano é corno”
(geralmente um boçal)
e lá vinham as coisas podres
(que a gente sabia há tempo)
escrita em letras cruéis
na porta do mercadinho.
de melão-são-caetano a gente fazia judas.
um dia, dois lambanceiros,
carregando um desses monstros,
deram de cara com a justa.
era escuro e era tarde:
- onde vão, rapaziada?
- - levar o porre pra casa.
- muito bem, se a gente pega
leva logo pro xadrez.
entenda nossa virtude.
(a vida é um trem-expresso;
a noite, meu sonho aceso;
a luz do sol, o meu medo,
coisas que trago e não calo)
dona Totó, matriarca, levou a vida em chinelos.
Tinha medo de feitiço e se pegava nos santos.
Somente para assustá-la, sal pimenta
e pião-roxo em sua porta deixou-se;
levou a velha um mês, lavando a porta com banhos
(e nós, por trás, sisbaldando)
sic transit gloria mundi!
amas a morte, parceiro?
Ai, que saudade que eu tenho
Dos tiroteios de outrora!...
Geraldina cangaceira mandou matar o marido
nos garimpos do pedral. depois comprou um cavalo
todo arriado e fogoso, vestiu uma calça de homem
e bebia em botequim. tinha papo e andava armada.
era o terror dos meninos.
um dia foi encontrada cravada à faca no chão;
do coração decepado não lhe saiu uma gota!
então as pedras choveram durante um mês no lugar.
poetas desesperados escreviam e se matavam.
na casa de Vó Floripes, Luís, Jacundá e Getúlio
morreram só de beber.
Até hoje ninguém sabe quem matou o cara estranho
que foi achado no rio, com a tez tirada à faca.
perceba a nossa herança.
a nossa pouca vergonha, nossa desordem astral,
sempre humilhou a Cultura. eis o espanto dos sábios:
“Desde o Piauhi, todo o sertão exportou víveres, carne de boi e de porco; toucinho,farinha sêcca e de puba, assucar, cachaça, tabaco, doces, queijos, gallinhas,ovos, bois vivos, porcos e vaccas paridas,até laranjas, aboboras e inhames para a phantastica e maravilhosa Marabá,surgida de repente como obra de magia na foz do escuro tio Tacai-una”.
e a delícia que fomos!...
“Marabá brotara da ganância do dinheiro; logo,totalmente alheia a qualquer preocupação religiosa e moral. Principiou sendo o que chamam currutela, nome bem significativo, empregado com muito acerto nas regiões de garimpos, e que não carece comentários (...)
Algumas das pragas morais e sociais mais comuns Eram a mancebia e a poligamia, por meio sobretudo do casamento civil. Quantos desses seringueiros,
castanheiros, esqueciam-se de suas famílias legítimas,E tentavam construir outro lar, servindo-se do contrato civil passado sem as menores garantias, perante funcionários sem conhecimentos jurídicos e sobretudo sem moral!
Não se respeitava nem casamento religioso, nem contrato civil efetuados anteriormente em outros lugares”.
mas não ficava só nisso...
ouçamos a voz de outros:
“Marabá” - palavra mágica: luminosa e sombria evocando contos fantásticos ou narrações de aventureiros. (...) Mas, que habitantes! Aventureiros arriscando a sorte, colhedores de castanha, que são também, conforme a sucessão das estações, caçadores de diamantes. (...) Em Marabá encontram-se todas as raças e todas as paixões. A prostituição aí é intensa. Os casais em absoluto não se conformam com as promessas definitivas sancionadas pela Igreja ou pela lei civil. A proporção de botequins bate sem dúvida o recorde do mundo: um, para cada 17 habitantes.”
O nomadismo é inerente a essa raça: instabilidade inata, tanto do sertanejo como do garimpeiro, hoje aqui, amanhã acolá, com ou sem razão. Vontade de “ver o mundo”, desejo nunca satisfeito de melhorar de vida. (...) Essa instabilidade da população só pode prejudicar gravemente a humanização e a “civilização da cidade, pois, que interesse há em constituir uma família, em construir uma casa, em dar uma instrução séria às crianças, se a vida, hoje “arrumada” aqui, tiver de ser amanhã transportada acolá e, depois de amanhã, ainda alhures?
... Entremos numa dessas casas. Cuidado em não esbarrar logo na entrada, pois há no chão uma fileira de paus curtos enfiados na terra erguendo-se ameaçadores, tal qual dentes de ancinhos; servem, na ausência de porta, para interditar a entrada aos porcos da vizinhança (...) Tanto as paredes como de palha de uns dois metros de altura, que esboçam uma divisão da casa em cômodos, são recobertos de jornais. Esse revestimento, julgam os moradores, é muito mais bonito do que um leite de cal ou a simples palha trançada. “Só branco, não interessa”, disse-me um deles certa vez. Para passar o tempo, basta se aproximar da parede e ler o jornal. E, se não souber ler, pode-se ao menos olhar as gravuras. (...)
(...) a rede é sempre individual. Mas ninguém sabe, de tarde, quantas pessoas irão dormir de noite na casa. Talvez somente a família: os homens de um lado do tabique e as mulheres do outro. Mas, muitas vezes, parentes e amigos que vêm do “centro do comércio” pedem para arranchar e ficam semanas, meses a fio. É a lei da hospitalidade.
(...) Não seria luxo, é claro, consertar essas casas (na medida do possível), tapar os buracos das paredes, trocar a palha do teto, instalar uma mesa na cozinha? Mas, para quê?”
Barruel velho de guerra num entendeu porra nenhuma!
E que pensavam os barqueiros
deste médio Tocantins?
Eles cantavam, cantavam...
Quem me dera eu vê hoje
de quem m’alembrei agora
quem eu trago no sentido
retratado na memora
vou mimbora, vou mimbora
as águas vão me levano
eu nem sei quem fica atrás
mas meus zoios vão chorano
acabou-se, acabou-se
quem eu amava com firmeza
cobriu o corpo de luto
e o coração de tristeza
vou mimbora, vou mimbora
lá pra baixo, pro Pará,
não chore por mim, morena,
eu vou e torno a voltar
rio abaixo, rio abaixo
remando minha canoa
encostando em todo porto
ganhando coisa boa
rio arriba, rio abaixo
remando na montaria
coisa que acho bunito
canoa aqui leva Maria
cantei onte, cantei hoje,
querem que eu cante travez
meu peito num é de aço
nem foi ferreiro qui fez
essa noite não drumi
cuma marreca piano
o marvado desse bicho
é gente qui tá criano
vou mimbora, vou mimbora
de hoje tô m’aviano
o cavalo que vou nele
tá no mato si criano...
ai, as súcias de outrora!...
eu vi, meu mano, eu vi,
eu vi o acamadô
onde o Fonseca apanhou...
quantos tiros deu na onça, Luizãlo?
Dei um, dei dois, mas o bicho
foi-se embora
E p í l o g o
então, meu mano, o mundo
pegou de raiva com a gente:
abriu a tranca do inferno
tirou seus monstros de ferro
cortou o verde das matas
rasgou a casca do ovo
e despejou nossa história.
depois, os seus cavaleiros
entraram portas a dentro
cortaram nossos cabelos
comeram nosso feijão
botaram fogo na roça
e semearam colonião.
morreu quase todo bicho
esvaiu-se todo encanto
visagem caiu no mato
- pernas, para que vos quero? –
passarinho foi embora
dizer pra onde não sei;
só ficamos nós, coitados,
presos no arame farpado
bando de bois entre bois.
calcule nossa tragédia.
“A poesia é necessária” (Ronaldo Giusti Abreu/Marabá)
Vadico...
dona maria a enrolar charutos
que o menino venderia
nas ruas estreitas de são luís
e assim o status de adulto:
aos doze anos
o primeiro gole
a primeira mulher
o que restou da boêmia:
na bainha, espada de penicilina
soldado à paisana na guerra
contra o exército de bacilos
era como se planasse
ladeira abaixo e era sábado
(a camisa de algodão inflada
pelo vento quente da tarde)
o maldito salva-vidas a gritar:
lá vem golias!
lá vem mata-gato!
lá vem massiste!
na oficina:
a solidão dos relógios
o carrilhão na parede
a espera do conserto
que não virá
sexta-feira à noite:
os cabarés da Côndor
minha iniciação sexual
que já não seria apenas uma mentira
pai...
na terça-feira gorda
quando já não havia
qualquer esperança de folguedo
um anjo do mal lhe pegou pela mão
e levou-lhe para um lugar desconhecido
pai...
vem o passado
(embrulhado em papel de pão)
e diz que já é tempo
de pagar o conserto
da velha máquina de escrever
o passado é a velha tecla empoeirada
suja de tinta e lubrificante
que “seu” jordão limpava com paciência
e sabia que ela jamais seria a mesma
e já não gravaria como antes
na branca pele do papel “chamex”
mas a tecla do teu sorriso
iluminada pelos olhos de criança
cravava em mim um chamado
(algo que jamais entendi)
talvez um apelo que detrás da porta
me acompanharia os passos
para sempre
o aguardente animava o final da tarde
que o trabalho árduo preenchera de cansaço
raimundo que não sabe ler nem escrever
aceitou o desafio do patrão
discordou do amo e por isso
ganhou de prêmio terçadadas
que pelo corpo inteiro
lhe fazem lembrar
do preço de ser homem
estou entre a rudeza
das mãos em desalinho
e a candura dos lábios
que buscam em fala
gestos e sussurros
estou entre a flor entreaberta
e o falo que a despetala
e assim não há morte
mas a fugaz sensação
de um eterno recomeço
Sábado à tarde.
O sol ferve a água tocantina.
Eu posso vê-la borbulhando
da janela do escritório.
Nada me diz que ela voltará
ao leito natural do rio, tão cedo.
Nada é novidade nesta tarde
nem mesmo nos acampamentos
onde os flagelados se amontoam
e fazem fila à espera do pão,
o pão em cesta básica
que o chefe da Defesa Civil
distribui como esmola...
eu a colhi como uma flor
o coletivo subindo a ladeira
(minha cabeça para fora da janelinha)
às duas da tarde no caminho
para o centro educacional do maranhão
tínhamos 13 anos e a inocência a vencer
o beijo sem volúpia o sexo a brotar
na calça (saia) curta do uniforme escolar
o namoro durou apenas o ano letivo
depois os dias quentes a brisa da avenida beira-mar
e o exame de admissão para o liceu maranhense
nos separaram definitivamente
por onde anda maria lúcia ribeiro?
é mãe tia avó? aos 46 anos de idade
casou-se separou-se suicidou
morreu de parto ou de doença?
é dona-de-casa operária
dentista ou advogada?
não não quero resposta!
como gullar quero apenas perguntar:
algo que ficou sem resposta
e que assim ficará para sempre.
dona maria a enrolar charutos
que o menino venderia
nas ruas estreitas de são luís
e assim o status de adulto:
aos doze anos
o primeiro gole
a primeira mulher
o que restou da boêmia:
na bainha, espada de penicilina
soldado à paisana na guerra
contra o exército de bacilos
era como se planasse
ladeira abaixo e era sábado
(a camisa de algodão inflada
pelo vento quente da tarde)
o maldito salva-vidas a gritar:
lá vem golias!
lá vem mata-gato!
lá vem massiste!
na oficina:
a solidão dos relógios
o carrilhão na parede
a espera do conserto
que não virá
sexta-feira à noite:
os cabarés da Côndor
minha iniciação sexual
que já não seria apenas uma mentira
pai...
na terça-feira gorda
quando já não havia
qualquer esperança de folguedo
um anjo do mal lhe pegou pela mão
e levou-lhe para um lugar desconhecido
pai...
vem o passado
(embrulhado em papel de pão)
e diz que já é tempo
de pagar o conserto
da velha máquina de escrever
o passado é a velha tecla empoeirada
suja de tinta e lubrificante
que “seu” jordão limpava com paciência
e sabia que ela jamais seria a mesma
e já não gravaria como antes
na branca pele do papel “chamex”
mas a tecla do teu sorriso
iluminada pelos olhos de criança
cravava em mim um chamado
(algo que jamais entendi)
talvez um apelo que detrás da porta
me acompanharia os passos
para sempre
o aguardente animava o final da tarde
que o trabalho árduo preenchera de cansaço
raimundo que não sabe ler nem escrever
aceitou o desafio do patrão
discordou do amo e por isso
ganhou de prêmio terçadadas
que pelo corpo inteiro
lhe fazem lembrar
do preço de ser homem
estou entre a rudeza
das mãos em desalinho
e a candura dos lábios
que buscam em fala
gestos e sussurros
estou entre a flor entreaberta
e o falo que a despetala
e assim não há morte
mas a fugaz sensação
de um eterno recomeço
Sábado à tarde.
O sol ferve a água tocantina.
Eu posso vê-la borbulhando
da janela do escritório.
Nada me diz que ela voltará
ao leito natural do rio, tão cedo.
Nada é novidade nesta tarde
nem mesmo nos acampamentos
onde os flagelados se amontoam
e fazem fila à espera do pão,
o pão em cesta básica
que o chefe da Defesa Civil
distribui como esmola...
eu a colhi como uma flor
o coletivo subindo a ladeira
(minha cabeça para fora da janelinha)
às duas da tarde no caminho
para o centro educacional do maranhão
tínhamos 13 anos e a inocência a vencer
o beijo sem volúpia o sexo a brotar
na calça (saia) curta do uniforme escolar
o namoro durou apenas o ano letivo
depois os dias quentes a brisa da avenida beira-mar
e o exame de admissão para o liceu maranhense
nos separaram definitivamente
por onde anda maria lúcia ribeiro?
é mãe tia avó? aos 46 anos de idade
casou-se separou-se suicidou
morreu de parto ou de doença?
é dona-de-casa operária
dentista ou advogada?
não não quero resposta!
como gullar quero apenas perguntar:
algo que ficou sem resposta
e que assim ficará para sempre.
Sob as luzes de Argos(Javier di Mayr-abá)
Medidas
O cálice da luz
Tem que ser sorvido
Em pequenos goles,
A despeito da sede
E das luzes.
Só quem chega ao fundo do poço
Sabe a exata distância
Que o separa da superfície.
A escuridão existe
Para medir a intensidade da luz
Que não lhe coube sê-la.
Castanheiras
Esperei-te séculos!
Ergui-me viçosa e bela
até que apareceste
com ares senhoriais.
Eu sempre pensei
nosso sexo
assim mesmo:
sem nexo.
Mas essa motoserra
foi demais.
Infâncias
O mundo fez piruetas
com o pé de manga-rosa
pintou as bolas-de-gude
com as sobras do arco-íris.
Brincavam de amarelinhas
felizes muricizeiros.
Curiós, xexéus e sanhaços
faziam o maior furdunço
nas frutas, nos arvoredos.
Os anos de todos eles
a gente contava nos dedos.
Com argamassa dos sonhos,
a terra forjava os homens:
era Bruno, Erick, Carol e Rafa
brincando de lobisomem.
Auto tessitura
Habitam em mim
duendes e ninfas
que se embalam
ao som das águas
dos igarapés e rios...
Sonhando com os mares
sabem das enchentes e vazantes;
deduzem marés e preamar.
Brotam dos meus olhos
a alegria da luz
do nascer do dia
e a tristeza de não-sei-bem-onde
adornada pelo vôo das gaivotas
e andorinhas nos finais de tarde
a povoar meus olhos.
Coexisto escárnio e mistério;
convivo a cada segundo
com a hipótese do fim;
em cada curva
gume da afiada lâmina
a esperar por mim.
Meus líquidos – mel e fel,
são taças a inundar-me os leitos.
As dores, na carne ínvia,
Agem ambíguas em viagens e lendas.
- Os sons roubam-me a cena.
É sempre assim!
Sou tantos nessa moldura de carne e ossos...
A música que me habita
ronda em minha mesa
farta de canções impossíveis.
Olho o horizonte
e tento resumir o céu
aos pedaços que alcançam minhas retinas.
Os dias parecem-me tão curtos
já não me bastam;
sou pouco demais para mim mesmo!
Talvez porque ainda procuro rumos
em minhas velas enfunadas.
O tempo é um novelo:
nem novo, nem velho,
basta-se a si mesmo.
É só tempo, a esmo,
sem antagonismos... sem dilemas...
O mundo que nos rodeia
é um abismo de sorriso largo
e o reino fugidio do sonho
não contém a magia do passo que decide.
Os sonhos são mais caprichosos
que a musa que amei.
O cálice da luz
Tem que ser sorvido
Em pequenos goles,
A despeito da sede
E das luzes.
Só quem chega ao fundo do poço
Sabe a exata distância
Que o separa da superfície.
A escuridão existe
Para medir a intensidade da luz
Que não lhe coube sê-la.
Castanheiras
Esperei-te séculos!
Ergui-me viçosa e bela
até que apareceste
com ares senhoriais.
Eu sempre pensei
nosso sexo
assim mesmo:
sem nexo.
Mas essa motoserra
foi demais.
Infâncias
O mundo fez piruetas
com o pé de manga-rosa
pintou as bolas-de-gude
com as sobras do arco-íris.
Brincavam de amarelinhas
felizes muricizeiros.
Curiós, xexéus e sanhaços
faziam o maior furdunço
nas frutas, nos arvoredos.
Os anos de todos eles
a gente contava nos dedos.
Com argamassa dos sonhos,
a terra forjava os homens:
era Bruno, Erick, Carol e Rafa
brincando de lobisomem.
Auto tessitura
Habitam em mim
duendes e ninfas
que se embalam
ao som das águas
dos igarapés e rios...
Sonhando com os mares
sabem das enchentes e vazantes;
deduzem marés e preamar.
Brotam dos meus olhos
a alegria da luz
do nascer do dia
e a tristeza de não-sei-bem-onde
adornada pelo vôo das gaivotas
e andorinhas nos finais de tarde
a povoar meus olhos.
Coexisto escárnio e mistério;
convivo a cada segundo
com a hipótese do fim;
em cada curva
gume da afiada lâmina
a esperar por mim.
Meus líquidos – mel e fel,
são taças a inundar-me os leitos.
As dores, na carne ínvia,
Agem ambíguas em viagens e lendas.
- Os sons roubam-me a cena.
É sempre assim!
Sou tantos nessa moldura de carne e ossos...
A música que me habita
ronda em minha mesa
farta de canções impossíveis.
Olho o horizonte
e tento resumir o céu
aos pedaços que alcançam minhas retinas.
Os dias parecem-me tão curtos
já não me bastam;
sou pouco demais para mim mesmo!
Talvez porque ainda procuro rumos
em minhas velas enfunadas.
O tempo é um novelo:
nem novo, nem velho,
basta-se a si mesmo.
É só tempo, a esmo,
sem antagonismos... sem dilemas...
O mundo que nos rodeia
é um abismo de sorriso largo
e o reino fugidio do sonho
não contém a magia do passo que decide.
Os sonhos são mais caprichosos
que a musa que amei.
Minha cidade, minha vida - Ademir Braz
Assim como o pedreiro orienta
do ferro e da pedra o verbo exato;
como a lavadeira que os panos leva
aos girassóis da fonte matinal
e nos álveos de luz dispersa em cora
a seda orvalhada dos lençóis;
assim minh’alma disporei em pranto
até que tu, só tu, aurora minha,
raies sobre as velas do meu canto.
Entre as sombras que a luz semeia
de brilhantes, enredado em fluídos
ouço tua voz, cidade, acalentando
em pranto insones e perdidos.
Sobre o sono lânguido das rochas
ardem lírios brônzeos. Secretos
címbalos cintilam em vertigem:
é todo estilhaço pelos tetos
o mar luar silenciosamente.
Puro ouro em pó sobre a calçada
é teu soluço, córrego sem leito,
e que sentido tem a luz assim
esparsa e rara a transmudar-me o peito?
Eu vivo imerso para sempre neste
e nas coisas deste e dos outros mundos.
Há dias, porém, que me aborreço
até com que me aborreço. São
dias inóspitos, de fardos e farpas,
agravos e adagas; são águas terçãs
de agosto aquilo com que me aborreço.
São ácidos dias, cidade, quando
a vida, aos trancos, derrapa, trepida,
e a mão em chaga viva tece de urtigas
um manto sob o céu de pássaros e bruxas.
E troto então em tuas ruas várias
entre meninos sombrios e cães sem dono
e lembro, dos teus cantores, aquele
que chorou por ti no plenilúnio:
“Sofres: teu mal devora-te as entranhas;
há podruras que a seiva te empeçonham...”
A voz tonitroante - e inútil, cidade -
do poeta ressoa nos casebres
e na praça mouca dos poderes
(mas nem por isso cessarei o alarde).
Queria então falar de amores, cidade,
mas o amor não é tudo: não é paz,
nem crença, nem destino. Não é pão,
justiça, crime ou câncer. Nem terra
ou fome; cataplasma, água, ar, insônia,
nem bebida forte que os olhos doura.
Que fim levou a amada, cidade,
a dos olhos dourados e mãos camponesas
que um dia, ao fim do dia,
levou-me uma rosa entre os seios
e a promessa - já realizada -
de uma dor tão grande como nunca vista
em nenhuma teogonia? A amada
e a rosa eternizaram-se no espelho.
Vês? Tu e eu morremos um para o outro
diariamente. (Somos o que somos. E somos
apenas memória do que fomos).Tudo que sei
disperso neste coração legado às ventanias:
só trago no céu da boca, indissoluta,
a tatuagem invisível de tuas estrelas.
Sim, são ácidos esses dias,
quando até o amor se exila.
Então a poesia sai de mim aos gritos
e não sei senão das coisas que os pássaros
perdem, o mar deixado atrás, a negra noite
que se acumula na boca
entre versos de Neruda.
do ferro e da pedra o verbo exato;
como a lavadeira que os panos leva
aos girassóis da fonte matinal
e nos álveos de luz dispersa em cora
a seda orvalhada dos lençóis;
assim minh’alma disporei em pranto
até que tu, só tu, aurora minha,
raies sobre as velas do meu canto.
Entre as sombras que a luz semeia
de brilhantes, enredado em fluídos
ouço tua voz, cidade, acalentando
em pranto insones e perdidos.
Sobre o sono lânguido das rochas
ardem lírios brônzeos. Secretos
címbalos cintilam em vertigem:
é todo estilhaço pelos tetos
o mar luar silenciosamente.
Puro ouro em pó sobre a calçada
é teu soluço, córrego sem leito,
e que sentido tem a luz assim
esparsa e rara a transmudar-me o peito?
Eu vivo imerso para sempre neste
e nas coisas deste e dos outros mundos.
Há dias, porém, que me aborreço
até com que me aborreço. São
dias inóspitos, de fardos e farpas,
agravos e adagas; são águas terçãs
de agosto aquilo com que me aborreço.
São ácidos dias, cidade, quando
a vida, aos trancos, derrapa, trepida,
e a mão em chaga viva tece de urtigas
um manto sob o céu de pássaros e bruxas.
E troto então em tuas ruas várias
entre meninos sombrios e cães sem dono
e lembro, dos teus cantores, aquele
que chorou por ti no plenilúnio:
“Sofres: teu mal devora-te as entranhas;
há podruras que a seiva te empeçonham...”
A voz tonitroante - e inútil, cidade -
do poeta ressoa nos casebres
e na praça mouca dos poderes
(mas nem por isso cessarei o alarde).
Queria então falar de amores, cidade,
mas o amor não é tudo: não é paz,
nem crença, nem destino. Não é pão,
justiça, crime ou câncer. Nem terra
ou fome; cataplasma, água, ar, insônia,
nem bebida forte que os olhos doura.
Que fim levou a amada, cidade,
a dos olhos dourados e mãos camponesas
que um dia, ao fim do dia,
levou-me uma rosa entre os seios
e a promessa - já realizada -
de uma dor tão grande como nunca vista
em nenhuma teogonia? A amada
e a rosa eternizaram-se no espelho.
Vês? Tu e eu morremos um para o outro
diariamente. (Somos o que somos. E somos
apenas memória do que fomos).Tudo que sei
disperso neste coração legado às ventanias:
só trago no céu da boca, indissoluta,
a tatuagem invisível de tuas estrelas.
Sim, são ácidos esses dias,
quando até o amor se exila.
Então a poesia sai de mim aos gritos
e não sei senão das coisas que os pássaros
perdem, o mar deixado atrás, a negra noite
que se acumula na boca
entre versos de Neruda.
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